10 de novembro de 2013

Crônicas do livro: Para uma menina com uma flor - Vinicius de Moraes


 Como o blog anda meio parado por conta das minhas leituras atrasadas, resolvi colocar algumas crônicas que tenho lido do livro " Para uma menina com uma flor " do Vinicius de Moraes.

 ARMA SECRETA

 A notícia dada por um vespertino de que dez mil pintinhos de raça estavam sendo eletrocutados por ordem da Inspetoria Sanitária Animal do Ministério da Agricultura, por estarem contaminados de perigoso mal, foi recebida com a maior indignação por todos os galinheiros livres da cidade. O terrível morticínio, que nem de longe se compara a outros de memória recente, como as chacinas de Guernica, Lídice e Ourador sem falar nos 6 milhões de judeus torturados e assassinados pelos nazistas - causou, no entanto, grande mal-estar no seio da família galinácea do Brasil, sobretudo por serem as vítimas pobres crianças indefesas. 

 Como é sabido, cinco mil pintinhos já haviam sido sacrificados até sábado último, devendo os outros enfrentar o poleiro elétrico nos dias a seguir. Quer dizer: por essas horas o pintalha-me todo já deve ter encontrado o seu Criador e não é difícil, com um pouco de imaginação, ver os bichinhos a piar tristemente pelas verdes e enevoadas pastagens do céu das galinhas, na saudade de seus inconsoláveis. 


 De posse da notícia, andou o cronista percorrendo vários galinheiros da cidade, encontrando por toda parte um ambiente misto de desolação e revolta, principalmente entre os galináceos prisioneiros, a cujas gaiolas e samburás teve acesso graças a uma permissão dificilmente conseguida com o Fomento da Produção Animal. 

 - É uma barbaridade! - disse um garnisé de pés atados. - Se eu conseguir sair daqui eles vão ver comigo!

 - E eu que tinha vários sobrinhos lá... - soluçou uma Rhode Island rolando dolorosamente os olhos cheios de lágrimas. 

 - Não se importe não, minha filha - retrucou uma galinha-de-pescoço-pelado, que se fazia notar por um certo ar subversivo. - A coisa está por pouco. O revertere vem aí! 

 - Qual! - cacarejou uma bela Legorne. - Você ainda acredita em justiça? Pois bem: eu, minha filha, quero é me divertir. Assim que sair daqui, você vai ver só o galinheiro grã-fino que eu vou pegar. É preciso é aparência... Que é que adianta lutar? Eles são mesmo os mais fortes... Eu não, eu vou é com jeitinho... 

 - Galinha! - cacarejou-lhe de volta um pedrês. 

 Diante do que, resolveu o cronista bater em retirada, mal habituado que está a um certo cacarejo mais vulgar. Mas a visita a alguns galinheiros particulares, onde o regime de iniciativa privada é evidente, e a outros em franco processo de socialização, produziu efeito idêntico. 

 - Soube que morreram como heróis! - disse um galinho carijó, - Apesar de crianças, enfrentaram a morte com a bravura característica da raça! Estamos providenciando uma reunião no sentido de erguer-lhes um monumento que perdure como o símbolo da nossa revolta. Pobres pintinhos... 

 E assim foi em todos os galinheiros. Num último, por sinal localizado no quintal de uma parenta nossa, tivemos oportunidade de falar com um líder da raça. O encontro foi cercado das maiores precauções, mas nos foram feitas revelações que não podemos deixar de transmitir aos leitores, embora sem citar o santo, ou melhor, o galo. Disse-nos o circunspecto bípede: 

 - Trata-se de um ato de desespero, um ato de medo, meu caro plumitivo. Eles não sabem, no entanto, que a coisa está muito mais avançada do que eles pensam. As condições mudaram. O senhor não vê, por exemplo, essa galinha que apareceu em Rondolândia, em Goiás, e que põe ovos brancos e azuis através de dois sistemas de fecundação e postura independentes? Isso é uma arma com que eles não contam. No fundo, ficam atribuindo mais esse fenômeno à bomba atômica, mas se enganar redondamente... Para nós, isso é pinto!

PRAIA DO PINTO

 Há uma praia dentro de outra praia. Uma é a praia do Leblon, e a outra não é praia - é praia do Pinto. Há uma praia dentro de outra praia, uma onde vem bater, verde-azul, a onda oceânica, e outra onde vai desaguar o Rio escuro, em sua mais sórdida miséria. 

 Há uma praia dentro de uma praia. Ah, brinquemos de falar bobagem, brinquemos de inventar cirandas, porque a verdade é que há realmente uma praia dentro de outra, uma praia de fome, sujeira e lama, e ela se chama praia do Pinto. Fica no Leblon, como um imundo quintal raso de apartamentos de arrogante gabarito. Não há nessa praia areia branca, barracas coloridas e coxas morenas absorvendo ultravioleta. Nessa praia que não é praia, é favela, há, isso sim, barracões de lama e zinco cheirando a imundície: há a Sífilis dormindo com a Tuberculose, no chão úmido da terra; há um enxame de Disenteriazinhas engatinhando no lodo, um mundo de Verminosezinhas patinhando nos próprios excrementos, e há Descalcificações e Reumatismos Deformantes muito velhos, pitando solitariamente na noite fétida em torno. 

 São centenas de casebres sórdidos, a abrigar milhares de seres humanos, cuja única diferença de mim é a pele negra, negra talvez para esconder melhor o próprio sofrimento na treva povoada de moléstia, molejo de mulher e música malemolente. São milhares de dentes brancos a iluminar a noite espessa de samba, álcool e luxúria, enquanto, em torno, as criancinhas morrem, os meninos lutam no aprendizado necessário da valentia e os macróbios da resistente e dura vida negra se imobilizam como estátuas invisíveis, no pensamento de antigos deuses nunca esquecidos. 

 É a praia do Pinto, praia da pinimba, praia da porcaria. São negrinhas de ventre pontudo, levando, apenas púberes, os frutos da ignorância e do ócio dos homens. São negras a carregar não ânforas gregas, mas latas d'água para o cotidiano patético. São negros esgalgos, de camisa de malandro, a se experimentarem em passos de capoeira. São dois malandros de siso grave a se encontrarem, no enflorescer de uma aurora cor de seio, para disputar, a faca ou a navalha, o abandono de uma mulata com pele de dá e o olhar de vem. É o golpe rápido, o estertor surdo, o ventre vomitando as vísceras de uma só vez. 

 É música. Música de violões se contrapontando. Música de batucada na tendinha; música de Ogum no terreiro. Às vezes, a voz estelar das pastoras, enredando em fios cristalinos a trama de um samba de enredo ou de uma marcha de sua escola. 

 Adiante, os apartamentos miram o mar, o mar que por vezes ruge e se precipita, demagógico, como a querer varrer do bairro a miséria da favela inelutável. Atrás é a Lagoa serena, rodeada de casas brancas, gordas e espapaçadas. 

 No meio é a praia do Pinto, a praia do Pinto, a praia do Pinto!

By: May B.

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